ETIOLOGIA DA CÁRIE DENTÁRIA: UMA NOVA ABORDAGEM
A teoria da cárie dentária que tem prevalecido até o presente momento é ainda a formulada por Muller no século 19, cuja idéia fundamental se baseia no ataque da superfície do esmalte pelos ácidos da fermentação bacteriana. Após decorrer mais de um século quase nada mudou da original teoria. A ciência e a tecnologia progrediram extraordinariamente neste século, particularmente as técnicas odontológicas e os métodos de prevenção da cárie, contudo, a etiologia da cárie permanece ainda desconhecida em muitos aspectos importantes.
Para iniciarmos esta nova abordagem começaremos por algumas perguntas: Por que algumas raças são mais resistentes do que outras com relação à incidência da cárie?
Por que alguns dentes são mais resistentes do que outros e mesmo no mesmo dente algumas faces são mais resistentes do que outras? Por que os dentes dos cadáveres
não se deterioram mesmo depois de séculos? Por que os dentes despolpados são menos susceptíveis à cárie? Por que os fatores sistêmicos ( hereditariedade, hormônios, vitaminas, etc.), alguns medicamentos e algumas drogas interferem sistemicamente na incidência da cárie tanto em animais de laboratório quanto no ser humano? Por que o estresse aumenta a incidência da cárie? Essas e outras perguntas nos levam a considerar o processo da cárie como sendo modificado por fatores endógenos e que são também importantes para o aparecimento da cárie.
Como o dente é um órgão vital, isto é, possui células, vasos sanguíneos, inervação simpática e parassimpática e liquido extracelular, é evidente que ele está inserido no contexto fisiológico do organismo e, portanto, sujeito aos mesmos controles que os outros órgãos. Com relação ao dente temos que considerar algumas particularidades fisiológicas decorrentes de sua estrutura calcificada e a ausência de células no esmalte. Portanto, a vitalidade do dente depende do complexo polpa-dentina, e particularmente da dentina que faz junção com esmalte e cemento.
Na verdade o metabolismo do dente depende exclusivamente da dentina, pois a polpa somente lhe serve de suporte e nutrição. A dentina apresenta duas partes distintas tanto anatômica quanto metabólica. O corpo das células dentinárias ( odontoblastos) situa-se na face interna da dentina limítrofe com a polpa e os seus prolongamentos protoplasmáticos se estendem pelo corpo da dentina até o limite da junção amelo-dentinária, anastomisando-se ao longo de todo o trajeto dos túbulos dentinários que são
as estruturas que envolvem esses prolongamentos como também lhes conferem a individualidade e o meio extracelular por onde circula o liquido dentinário. É importante considerar também que a dentina não está isolada do esmalte pela junção amelo-dentinária mas, intercomunicam-se tanto anatômica quanto fisiologicamente por meio dos prolongamentos dos túbulos dentinários que invadem a estrutura do esmalte na forma de tufos, lamelas e outras formações contendo estruturas orgânicas.
Com relação ao metabolismo dentinário temos que fazer uma distinção entre o corpo celular e os seus prolongamentos pois ambos diferem entre si pelas organelas e localização na dentina. O corpo do odontoblasto isto é a parte basal desta célula localiza-se na parte interna da dentina em justaposição com a polpa e por essa razão apresenta um metabolismo predominantemente aeróbico em virtude da presença do oxigênio carreado pelos vasos sanguíneos da polpa e também pela presença de maior número de mitocôndrias. Ao contrário, o metabolismo dos prolongamentos celulares pela própria anatomia e pela distância dos vasos pulpares e também pela escassez de mitocôndrias apresenta um metabolismo predominantemente anaeróbico isto é, o metabolismo da glicose se dá com baixa taxa de oxigênio o que determina uma glicólise parcial cujo produto final é o ácido láctico com baixa produção de energia ( para cada molécula de glicose obtem-se 4 moléculas de ATP) ao contrário, a via aeróbica cujos produtos são a água e o gás carbônico, produz 36 ATP por molécula de glicose metabolisada. O ácido láctico que é o produto metabólico da glicólise dos túbulos dentinários é excretado normalmente através do liquido dentinário que banha os prolongamentos protoplasmáticos e segue para a polpa impulsionado pela circulação do próprio liquido dentinário onde ele é recolhido pela circulação pulpar e metabolisado por outros órgãos do organismo particularmente os músculos e o fígado. Uma parte deste ácido láctico pode também ser metabolisado pelo odontoblasto.
Qual a importância do metabolismo dentinário na susceptibilidade do dente à cárie dentária? Para responder esta pergunta importante se faz necessário relatarmos algumas das experiências realizadas com a produção de cárie em animais de laboratório como também experiências clínicas em seres humanos. Os resultados obtidos com essas experiências indicam que as alterações provocadas no metabolismo dentinário refletem-se na incidência da cárie. Assim, toda condição em que haja uma diminuição da glicólise dentinária e consequentemente uma diminuição da produção de ácido láctico resulta numa diminuição de cáries e, ao contrário, toda vez que estimulamos a glicólise dentinária e o aumento da produção de ácido láctico resulta num aumento de cáries.
Como exemplo de condições onde há uma diminuição da glicólise dentinária e conseqüentemente uma diminuição de cáries, citamos dois inibidores da glicólise qual sejam o citrato e os ácidos graxos e a vitamina tiamina que reduzem a incidência de cárie em animais de laboratório. Nesta situação se encontram também os vasodilatadores particularmente a cinarizina ( stugeron) que se mostrou potente redutor de cáries em ratos quando administrada à ração. Qual seria o papel do vasodilatador na redução da glicólise dentinária? A explicação está no fato de o vasodilatador aumentar o fluxo sanguíneo pulpar e consequentemente o aporte de oxigênio para os odontoblastos, estimulando o seu metabolismo aeróbico com redução da produção de ácido láctico dentinário. Por outro lado, toda condição que estimule a atividade glicolítica dentinária com aumento da produção de ácido láctico resulta num aumento de cáries. Como exemplo citamos as catecolaminas (adrenalina, efedrina, etc.) que quando administradas à animais submetidos à dietas cariogênicas aumentam a incidência de cáries. De modo idêntico provocamos aumente de cáries em animais de laboratório que tiveram a ligadura de suas artérias mandibulares. Qual a razão pela qual as catecolaminas e a redução do fluxo sanguíneo pulpar resultam num aumento de cáries? A explicação está justamente no fato desses procedimentos ocasionarem uma diminuição do aporte do oxigênio ás células dentinárias e consequentemente um aumento da atividade glicolítica com aumento da produção de ácido láctico. Como as catecolaminas são vasoconstrictores o resultado também é uma isquemia pulpar. Podemos incluir nesta situação a condição de estresse na qual se verifica um aumento da adrenalina sistêmica que irá agir como vasoconstictor pulpar .
Resumindo podemos dizer que toda a situação em que resultar num aumento da atividade glicolítica dentinária haverá também um aumento correspondente da incidência da cárie. Ao contrário, toda situação que reduzir a atividade glicolítica dentinária resultará numa diminuição de cáries.
Qual a relação existente entre o aumento da produção de ácido láctico dentinário e a incidência de cárie? Para responder a essa pergunta reportamo-nos novamente a existência de uma circulação do liquido dentinário por todos os canalículos dentinários e também a sua penetração no esmalte através de estruturas que possibilitam a sua difusão. Normalmente, a produção de ácido láctico dentinário é excretada via polpa para a corrente sanguínea, de forma que existe um equilíbrio entre a produção e o consumo deste ácido láctico. Em determinadas condições onde a produção supera de muito o consumo de ácido láctico, resulta num aumento da concentração deste ácido no liquido dentinário que passa a disseminar-se por toda a dentina e também para o esmalte através das estruturas porosas da junção amelo-dentinária. A presença constante do ácido láctico nas estruturas do esmalte acaba por permeabilizar as estruturas que estiverem no seu caminho dando origem a vias de maior porosidade do esmalte tornando-o mais permeável à penetração de líquidos do meio exterior, incluindo aqui os ácidos de fermentação bacteriana. Dessa forma, podemos entender a susceptibilidade do dente à cárie como sendo um aumento de sua permeabilidade produzida por uma descalcificação interna do esmalte pelo ácido láctico dentinário.
Baseado nestas considerações podemos redefinir a etiologia da cárie dentária da seguinte maneira: Como na maioria das doenças a sua etiologia está baseada no equilíbrio entre a defesa e o ataque isto é, entre os fatores predisponentes e os fatores desencadeantes. No caso específico da cárie dentária o fator predisponente é a permeabilidade do esmalte produzida pelo ácido láctico dentinário e o fator desencadeante são os ácidos de fermentação bacteriana produzidos na superfície do esmalte. De forma que podemos definir a susceptibilidade do dente á cárie como resultado de um aumento da permeabilidade do esmalte.
Evidentemente as medidas preventivas da cárie devem se apoiar nestes dois fatores, isto é, aumento a resistência do dente através de uma nutrição adequada e um padrão de vida saudável e um controle sobre a placa bacteriana. Com relação à prevenção da cárie pelo uso de fluoreto não se pode ser categórico quanto aos seus resultados que além de serem contraditórios ainda apresentam o agravo de efeitos colaterais sobre a saúde humana que por si só já é suficiente para descartar o uso do flúor como preventivo da cárie considerando ainda que existem outros métodos mais eficientes sem o risco de comprometer a saúde.